quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Requiem for a Dream

Kaboom.

Uma explosão inaudível que só em mim se fez sentir, estilhaços que se aninharam no quadrante esquerdo, moribundo, em simbiose com a carne, um pacto diabólico irreversível.

There was still smoke coming from the gun. I tried to walk, but I couldn't. I felt heavy, like carrying the world on my shoulders. The same world that was becoming foggy in front of my eyes. Breathing was taking a lot of energy. I was fading.

Curvei-me, e sucumbi. Ao longe, o embate com a superfície fria passava despercebido. O rapaz que jogava ao berlinde pensou tratar-se de um ramo que se rendeu às pressões da ventania. A menina nada ouviu, ocupada com os afazeres de adolescente. O casal olhou em redor, temendo que o amor secreto pudesse ser desvendado, mas nada vendo, permitiram-se descansar, os corações agora palpitando por motivo outro que não a apreensão.

02:57 da manhã. Acordo com suores frios, uma façanha numa época de calor intenso, uma cidade em chamas, mais insuportável do que nunca. O instinto leva as mãos ao peito. Não há sangue, não há estilhaços. Tenho a boca seca, resquícios de um sonho vivo. As cenas assomam à memória, desafiando a minha percepção da realidade. Levanto-me, mas tenho dificuldades em por-me de pé. A dor transpôs as dimensões, a fina linha entre sonho e realidade que permite ao ser humano manter-se são, manter-se lúcido. Imagino o caos, as tragédias, se de repente os sonhos se revoltarem e quiserem ser reais. O equilíbrio do Universo repousa sobre esta simples regra: os sonhos não podem ultrapassar a linha divisória!

Reza a lenda que cada buraco negro é evidência de uma revolta que ameaçou destruir o mundo. Quando os sonhos lutam contra o real, o mais humilde dos homens tem o poder de convocar um buraco negro, o mais temido dos castigos, o pesadelo dos sonhos. Só o mais humilde dos homens! Sem ilusões, imune aos cânticos das sereias que quase enlouqueceram Ulisses, imune às promessas feitas pelos sonhos, que o tentam subornar com uma eternidade de sonhos felizes, de luxúria, de riqueza, de poder, de posse. O mais humilde dos homens é o mais forte. Aceita a realidade fria, dura, cruel, ou feliz, cheia de esperança e paz. O mais humilde dos homens anda por entre nós, indiferente ao nosso estado de torpor, indiferente ao nosso vício, que nos mantém presos à ilusão criada, ilusão que não queremos que acabe. O buraco negro é convocado, todos os sonhos e ilusões rebeldes são sugados. O mundo regressa ao normal, a vida flui. O mais humilde dos homens volta a ter uma existência anónima. Quem o conhece não faz ideia.

Dele dizem que não tem sonhos, é um infeliz.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Um jogo de xadrez

Sempre com um sorriso na cara!

Dardos de luz, sempre lançados quando ela chega. Cortes seguros e profundos na escuridão, afastam a negritude e fertilizam o terreno para que a alegria prospere. Os deuses sorriem, mostram clemência. A alma cresce, cresce muito, ficando do tamanho da carne, e o homem torna-se puro.

De saltos altos!

Um pouco mais alta, um pouco mais próxima do paraíso. Forte, decidida. Muita vontade de ser feliz. Muita vontade de ser consumida por um fogo, um fogo intenso, único, que possa construir em vez de destruir. Menina-moça-mulher, mais vezes menina. Quando quer, mulher, mulher que arde, mulher que provoca, mulher que desperta sentimentos, mulher que vive, mulher igual. Igual. Igual a mim, igual a ti, igual a eles ou elas, igual a eles e elas. Menina-moça-mulher, bonita, sensual, aqui mais mulher, ali mais moça.

Vestida para matar...

Vontade própria, como o vento. Arrebatadora, aliciante. Um perigo, alarmante. Fases como a lua, mas nunca a Nova, pois não se esconde. Marés, rainha do mar. Princesa dos ares, duquesa da terra, senhora de tudo o que resta, incluindo corações. Condessa descalça? Também.

Azul-turquesa!

Dedicada, interessada, determinada, positiva. Caminho a ser construído, comboio com destino sem nome, destino a ser descoberto ao longo do percurso. Nas estações, gente que nunca mais se esquece, gente que sente falta, gente que ficou, gente que quer ficar, gente que ainda está por chegar. Gente que ela marcou, gente que ela está a marcar, e o futuro. Lugares onde foi feliz, lugares onde quer ser feliz. Lugares e gentes. A chave para desvendar o destino e o futuro. (Coloco as mãos sobre a cortina, espreito o que aí vem.)

Especial

Sincera, honesta, santa das causas impossíveis. Casamenteira, pasteleira. Alguém que nos marca como uma cicatriz, identificável passem os anos que passem. Alguém que merece tudo, alguém que merece o mundo. Alguém que merece alguém.


Para ti,

porque uma boa amizade é como um jogo de xadrez: é preciso muita paciência; é preciso ter atenção ao que o outro pensa ou faz; e, se os dois forem bons jogadores, pode durar por muito, muito tempo...





terça-feira, 17 de setembro de 2013

O Olho do Furacão

A calmaria impressionava. Preso dentro do furacão, eu vivia o sonho de todos os caçadores de tempestades. A possibilidade real de haver destruição e tragédia a curta distância parecia inverosímil.

O Olho do Furacão. O último reduto da paz, do paraíso. Terreno inviolável, onde só chegamos nos sonhos, os mais puros, sonhos de criança, sonhos com futuro, sonhos de futuro, sonhos sonhados, sonhos vividos.

Há gente que me faz lembrar o olho do furacão. Passam e sente-se o que poderia ser. Sente-se quais as possibilidades infinitas, se penetrarmos na couraça de ar em movimento acelerado. Ar. A mais inofensiva das barreiras. Não se vê. Não se teme. Não é irónico que seja o escolhido para servir de vedação para o paraíso? Tudo ali tão perto...

No furacão das pessoas, a barreira é mais perniciosa. A velocidade do vento é menor, só se sentem uma rajadas de quando em vez. Tempestades? Imprevisíveis. Talvez por isso os caçadores de furacões meteorológicos tenham mais notoriedade do que os caçadores de furacões humanos. Quando nada se vê, como nos podemos defender? Quando nada se sabe, como saber se devemos arriscar e procurar o olho do furacão? Sempre nos sonhos, claro. Os furacões são todos iguais, e fazem birra. Só aceitam ser penetrados nos sonhos. Uma vez conheci alguém que o fez de verdade. Penetrou um furacão humano e viveu para contar a história. Estava tão feliz, que desapareceu. Foi consumido pela inveja dos que o rodeavam. Ele chegou a dizer-me que, outrora, ninguém tinha medo de penetrar os furacões humanos. Até que um dia apareceu um cobarde. E o medo alastrou-se que nem uma pandemia mortal.


terça-feira, 6 de agosto de 2013

I still remember when I was not alive

Parece que foi ontem.

Sequência inicial de "8 1/2", de Fellini. Pairo no ar e contemplo a vida em baixo: respiram, vibram, sofrem, choram, amam. Não tenho a sorte de Guido, não há ninguém que puxe uma corda e me faça reentrar.

Desloco-me à velocidade do pensamento, à velocidade do esquecimento a que sou votado. Alvíssaras, alvíssaras! Um metro por cada um que dele se esqueça! Em baixo, os vermes continuam a falar comigo sem perceber que já não estou, sem perceber que não existo. Eis a forma mais cruel de invisibilidade, que mói e destrói, quando nem se apercebem da nossa ausência. E continua a doer, maldição. Nem isso consegui, deixar de sentir.

Em baixo, o que resta deambula. Não percebe o que lhe dizem. O movimento desordenado dos lábios de outrem confunde-o, ele clama pela simplicidade. Andar até ao fim da rua é um desafio, tudo é estranho quando somos desprovidos de alma.

Enquanto isto, eu pairo. É noite escura, os vermes dedicam-se à troca de fluidos, numa sessão de canibalismo onde as almas se tocam, o mundo se encolhe, e temos um raro vislumbre do lado lunar. Ninguém se lembra de me esquecer nessa altura, por isso pairo.

O que resta busca abrigo na reclusão. Tanto temos em comum. Se Saramago tinha razão nisso das almas e das vontades, o que sou eu? Estará ele sem alma ou sem vontade?

A reclusão permite que ele esteja entre iguais. Ele e o nada.




sábado, 3 de agosto de 2013

Gently weeping

Rápido. Mais rápido. Tento acelerar, respiração ofegante, coração aos pulos. Sinto o bafo da sombra. Atrás de mim o precipício crescia, ouviam-se gritos. o desespero de mais um momento apagado. Tapo os ouvidos, baixo a cabeça e continuo. Não posso parar, não enquanto a sombra estiver no meu encalço.

Afasto-me. Não reconheço o local. O meu olhar é atraído para um casal que troca carícias junto de um fio de água. Inebriados, tratam o corpo um do outro com divino respeito. O universo está parado. Para os amantes, o centro do mundo é aqui. Não me vêem, como poderiam fazê-lo? Nem eu me vejo. Ninguém me vê.

Enquanto corro passo por muitos aceitantes. São aqueles que não receiam a sombra e o que ela traz. Como os invejo! Parecem felizes, a sombra não impede que continuem a viver. Abrem os braços e aceitam-na, unem-se-lhe em uníssono:

I look at the world and I notice it's turning


O cansaço é matreiro. Nunca bate à porta. Entra pelas frinchas como se do Sol se tratasse. É o braço-direito da sombra - o esquerdo é o destino. Resisto-lhe, pois viver com aquilo que a sombra traz é inimaginável. Insuportável. Sinto as garras a penetrarem na pele. Esgar de dor. Sou impotente. Quem dera que tudo termine, que o vazio reine, que o silêncio impere pela eternidade.

Suplico-lhe que me deixe, que abra uma exceção. Viver perturbado é desumano, e eu já aprendi:

With every mistake we must surely be learning

A sombra responde com voz de barítono: não podes fugir do passado.







sexta-feira, 12 de julho de 2013

Broken.

O som do silêncio envolve-me. O pavor. A última vez? Não vale o esforço. Percorrer a caminho do passado é um risco. A memória é a maior inimiga do homem.

Dias de distância. Dizer ou não dizer? Nunca. Tenho medo.

O medo de falhar, o medo de ser rejeitado, tem mais peso que a possibilidade de ser feliz. Mundo estranho.





sábado, 6 de julho de 2013

Gostos não se discutem

Tunnel vision. Termo inglês para descrever a perda de visão periférica, com preservação da visão central.

Não, não vou escrever sobre nenhuma patologia. Se bem que...

Quando se gosta de alguém, mas gostar a sério, nada de ficanços e curtes, a pobre vítima sofre sintomas que podem ser comparados à visão de túnel, num sentido bem amplo. Raciocínio emperrado, cara de estúpido, perda de controlo da função visual, com os olhos a reivindicarem autonomia, procurando de forma incessante o objeto de afeto. Ritmo cardíaco acelerado, falta de ar, sensação de ter um buraco de meio metro no tronco.

Não que eu reclame para mim o título de especialista, seria deveras cómico que alguém tão inseguro tal fizesse. Porém, milhares de filmes vistos têm de servir para alguma coisa, sem esquecer recentes experiências.

Serão as culturas que deixam o amor romântico para segundo plano mais evoluídas? A escolha criteriosa de um parceiro, com base na possibilidade de garantir um futuro estável à futura família, tem mais que ver com o uso da razão, que a espécie humana tanto acena como símbolo máximo de superioridade terrena; a escolha baseada em ritmos cardíacos acelerados, falta de ar, visão de túnel, não poderia ser mais irracional e absurda. Porque é que evolução nos conduziu neste sentido? Porquê evoluir para sentir, para amar, quando o futuro da espécie poderia ser facilmente definido pela razão, pela escolha sensata?

Pego no meu exemplar d'O Gene Egoísta. A conclusão parece óbvia: as unidades reprodutoras que fizessem batota e utilizassem subterfúgios que criassem a necessidade estar com outra unidade seriam mais bem sucedidas do que as que nada sentissem, e só fossem compelidas para a carne por mandato. Carneavam mais vezes, maior prole, maior sucesso. Daí que mesmo nas culturas mais evoluídas, digo eu, haja sempre transgressores. Crianças terríveis!

Desejava estar imune. Quando somos possuídos por esta vontade parva, ficamos vulneráveis. Quando não parece haver hipóteses de vencer, depressivos. Venderia a alma ao Diabo pela imunidade, acreditasse eu nele. Mentes a ti próprio, e bem sabes. Venderias a alma pela realização do desejo. Venderias a alma para que o sentimento de vazio dentro de ti desaparecesse, admite! Cobarde, não percebes que desejar a morte do desejo é pior que desejar a própria morte. É o amor que nos torna humanos, não a razão. (Em itálico estão as palavras do meu alter ego, um ser muito mais corajoso do que eu, sem dúvida disposto a aventuras, não fosse ele prisioneiro no mais secreto abrigo da minha mente).